PARA QUEM CUIDA

Amanheceu em São Paulo

Publicado em: 07/12/2021 às 09h30
Criança

Por Carla Alessandra Sartorelli Guimarães

Vamos ler a crônica escrita pela Professora Dione?

Nessa crônica, a Professora enfatiza a importância do acolhimento, do coletivo, da sensibilidade frente à cultura de cada criança e, intrinsicamente, a de suas famílias e responsáveis, sempre com muito respeito às origens e crenças de todos e todas. Ela narra o projeto no qual todos os atores da escola precisaram se reunir, conversar e pensar em estratégias para atender da melhor maneira todos que chegavam e chegam à unidade educacional.

Fazendo uma analogia ao momento atual, vale lembrar que cada criança e cada adulto vivenciou a pandemia de uma forma singular, de modo que a volta para o espaço educacional está permeado de narrativas distintas, por isso, a escola, cada vez mais, a partir da função social que exerce, ocupa o espaço do qual a empatia e a humanidade se inscrevem a partir das atividades pedagógicas como também das relações, exemplo vivido pela EMEI Joao Mendonça Falcão.

Amanhecer

Imagem: Pixabay

Amanheceu em São Paulo

Por Dione Fonseca Evangelista

Minas Gerais, Montes Claros. O ano era 1978, eu tinha 2 anos. Morava em uma pequena casa com meu pai e minha mãe, que estava grávida da minha irmã.

Um dia, parecido com os outros, ouviam-se gritos, móveis jogados, copos quebrados. Meu pai estava bêbado. Eu chorava e, para me calar, pegou uma faca… Medo, pânico do que estava por vir, minha mãe conseguiu tirar a faca dele. Ela estava no limite, apavorada! Mas tinha uma voz dentro dela que ecoava para todos os seus sentidos! E no meio da noite resolveu fugir, enquanto meu pai dormia. Deixou tudo o que tinha e conhecia: a casa, a cidade, a família, aquela história.

Viemos para São Paulo, fugimos da violência doméstica. Cidade grande, que, apesar de tantos desafios, nos acolheu.

Resolvi compartilhar um pouco da minha história com o objetivo de contar que milhares de pessoas ao redor do mundo sofrem algum tipo de deslocamento forçado. Atualmente, trabalho e convivo com crianças que também sofreram.

Amanheceu na cidade de São Paulo, mais um dia de trabalho na Escola Municipal de Educação Infantil João Mendonça Falcão, no Brás, região central. Nenhum dia é comum. Com as crianças, cada amanhecer é sempre diferente.

São sete da manhã, ouvimos um choro que ressoou por toda a escola. Avistamos uma menina de 4 ou 5 anos que se agarrava ao seu pai, ele a trazia para o primeiro dia na escola. Eles não eram brasileiros, haviam chegado da Síria.

O pai quase não conseguia caminhar. Ela se jogou no chão e com toda a força do mundo segurou a barra de sua calça. Nunca tínhamos escutado um choro tão sofrido! A escola parou, todos silenciaram para tentar compreender aquele momento.

A menina se chama Lâmia, não queria ficar naquele lugar, nunca tinha tido a experiência de ir à escola. Tudo lhe era estranho, outro país, outro idioma, outra cultura. Trazia em seu choro, além do medo do desconhecido, as marcas da guerra.

O pai estava preocupado, e sentia-se inseguro em deixar sua pequena conosco. A despedida foi dolorosa naquele dia e em muitos outros.

Amanheceu na cidade de São Paulo, passos tímidos e olhar atento, mais uma criança chegava, era um menino. Ele veio acompanhado pela família, vinda de Bangladesh. Parecia encantado, observava atentamente todos os detalhes, ficou admirado com o parque. Ele se chama Ridoy. A despedida foi tranquila, mas, quando se deu conta de que estava sozinho, com pessoas que nunca tinha visto, começou a chorar, jogou as cadeiras, seus gritos repercutiram por todos os cantos. Outro idioma. Outra cultura. Outro país.

Amanheceu na cidade de São Paulo, o dia estava lindo, quente, ideal para alguma vivência ao ar livre. De repente, outro menino chegava para o primeiro dia na escola. Tinha 4 anos, observava curioso o espaço escolar. Hamzi veio da Palestina com sua família.

Quando chegou à porta da sala, seus olhos encheram-se de lágrimas, veio o choro e toda a emoção que sentia naquele momento. Reconheceu a menina síria, que segurou sua mão e cochichou ao seu ouvido. Despediu-se do pai. Poucos instantes depois, seu corpo demonstrava muito do que estava sentindo. Não conseguiu chegar até o banheiro. Outro idioma. Outra cultura. Outro País.

Amanheceu na cidade de São Paulo, outra chegada, mais um menino. Lesli Pedro veio do Haiti com sua família. Sua fisionomia era de medo, não chorava, nada falava, nenhuma reação, mas percebíamos o corpo todo contraído. Abraçava com tamanha força sua mãe. Ela, toda sorridente, olhava para ele querendo passar confiança. Era visível a preparação para aquele momento, o tinha vestido com calça e camisa brancas, seus sapatos brilhavam. Entrou na sala, manteve-se enrijecido por muito tempo, em silêncio absoluto. Outro idioma. Outra cultura. Outro País.

Refugiados 2

Imagem: Pixabay

E os dias são assim na EMEI João Mendonça Falcão. Recebemos crianças e famílias de diferentes partes do mundo, muitas vivenciaram os horrores de uma guerra, outras sentiram na pele a fome ou viram seu País destruído pelos desastres. São muitas tragédias, e a busca pela sobrevivência é o maior desafio. Lutar pela vida!

Refleti muito sobre o que essas famílias passaram e, ao mesmo tempo, como foram corajosas e resilientes. Mudar de país, que difícil travessia!

São vários sentimentos que emergem aqui dentro, são muitas perguntas e dúvidas e a importante missão: o acolhimento dessas crianças e suas famílias se torna fundamental.

De que maneira não excluí-las? Como respeitar suas origens? Como inseri-las no ambiente escolar? Como superar a barreira do idioma? Como olhar para cada criança individualmente?

Nossa escola se reuniu para discutir essas questões, principalmente porque é um direito da criança, de todas elas, o acesso à educação. Estudamos o tema, as leis que garantem esses direitos. Conhecemos as famílias, nos aproximamos das diferentes culturas. Tivemos de ampliar nossos olhares, sensibilizar nossos pares, os funcionários da escola, as crianças brasileiras e suas famílias.

E não foi fácil, porque, além das demandas que toda escola pública tem, teríamos de repensar nossa prática, garantir o atendimento das crianças em situação de refúgio e todas as outras imigrantes vindas principalmente da América Latina e de alguns países da África.

Refugiados

Imagem: Pixabay

E assim nasceu nosso projeto A Música e o Brincar na Educação Infantil, duas linguagens que dialogam facilmente com a infância.

Durante a construção do projeto, percebemos que a música e a brincadeira favoreciam o acolhimento. E a escola foi descobrindo a sua função social dentro da comunidade na qual está inserida. As crianças em situação de refúgio e imigrantes fazem parte da cultura intrínseca da nossa unidade.

Nossa proposta era acolher as crianças de uma maneira mais humanizada, que fizesse sentido, que fosse um trabalho construído no coletivo. Que, em toda trajetória do projeto, as crianças tivessem a oportunidade de ampliar o repertório musical dos nossos cantos brasileiros e os cantos do mundo, que tivessem contato com diferentes instrumentos musicais, que participassem da construção de objetos sonoros. Que a pesquisa das brincadeiras fosse feita pelas crianças.

Durante o processo de sensibilização sobre o refúgio e o fluxo migratório mundial, ficou claro que era fundamental valorizar e respeitar cada cultura. Que era importante conscientizar as famílias migrantes dos direitos à educação e à saúde e que, no momento em que as crianças eram matriculadas, pertenciam à comunidade escolar. Observamos a importância de dialogar com as famílias brasileiras e sensibilizá-las para também participarem de toda acolhida. E que toda a reflexão acerca do tema fosse construída. Discutimos a necessidade de respeitar o tempo da criança para aquisição da segunda língua. E buscaríamos formas de nos comunicar com ela.

A música e a brincadeira foram fundamentais nesse processo. De repente, as crianças cantarolavam, sorriam e se divertiam na brincadeira. As famílias trouxeram algumas inquietações relacionadas ao idioma, porque as crianças estavam deixando de falar a sua língua materna em casa. Surpreenderam-se positivamente quando orientamos para que isso não acontecesse. Era importantíssimo manter a cultura da família, e a língua fazia parte disso.

Deparamo-nos com questões alimentares, crianças que não comiam carne ou para as quais a preparação de determinado alimento era vista como “pecado”. Nossas cozinheiras prontamente nos ajudaram a garantir que essas demandas fossem respeitadas.

Estamos buscando formas de aprimorar o atendimento na secretaria porque a burocracia é grande, mas a matrícula de forma alguma pode ser negada.

Convidamos as famílias para contarem um pouco da sua história e da infância delas. Cada mãe ou pai que vinha, trazia uma música e uma brincadeira de que gostava quando era criança e compartilhava com a turma.

Foi importante trazer as famílias para dentro da escola. Sentiram-se valorizadas, reconhecidas, e foi riquíssima essa aproximação. Aprendemos muito a cada visita. Era como trazer cada país para perto de nós.

Outro ponto interessante foi como as crianças entendiam os idiomas, achavam que quem não falasse português falava inglês. Por meio do contato com diferentes culturas, começaram a desconstruir aquela ideia e se encantaram com a sonoridade de cada língua e muitas queriam aprender árabe, francês, espanhol, crioulo.

Também incentivávamos as crianças a nos ensinar palavras e frases nos idiomas diferentes do nosso. Muitas vezes as soluções para uma barreira linguística ou cultural vinham delas.

Procuramos oferecer um espaço lúdico, interativo, prazeroso, seguro, criativo, espontâneo e inclusivo, a fim de proporcionar um acolhimento significativo e estabelecer vínculos saudáveis.

E tem sido muito bom observar nossa escola se mobilizando, buscando soluções no dia a dia. Todos os funcionários, professoras, a gestão, as famílias participando do projeto.

Sabemos que podemos afinar nossos olhares, aprender cada dia mais sobre o tema refúgio. É fundamental levar a discussão para as escolas e toda a sociedade. Para que possamos encontrar bons caminhos para o acolhimento. Necessitamos de políticas inclusivas para que o acesso aos serviços públicos seja realmente garantido!

Lâmia, Ridoy, Hamzi, Lesli Pedro demonstram alegria! Posso afirmar que estão felizes! Aprenderam facilmente a nossa língua, gritam de alegria durante as brincadeiras, as risadas ecoam pela escola. Correm, se divertem, cantam, aprendem e ensinam!

* Os nomes das crianças neste texto são fictícios

Crônica escrita por Dione Fonseca Evangelista, Pedagoga, Professora de Educação Infantil e Fundamental I da Rede Municipal de Ensino da Cidade de São Paulo, publicado originalmente no Cadernos Globo: http://app.cadernosglobo.com.br/banca/volume-16/

 

 

 

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