SE LIGA!

Todos os meus sonhos

Publicado em: 14/03/2022 às 11h55

Por Juliane dos Santos Ribeiro

A Sala de Leitura é o espaço que mais aprecio no ambiente escolar, ficando até mesmo à frente dos espaços de práticas esportivas (dado muito relevante, pois meu cargo base é o de Professora de Educação Física). É lugar em que os diálogos e trocas de conhecimento permeiam cada canto, cada livro, cada página que foi ou ainda será explorada.
Completo 10 anos de rede municipal de ensino no próximo ano e, metade desse tempo tenho feito as mediações na Sala de Leitura através de projetos e ações diversificadas, objetivando proporcionar diferentes vivências – ligadas à literatura de forma direta ou indireta – aos estudantes da EMEF Professor Paulo Gonçalo dos Santos.

O apreço pelo espaço da leitura não veio somente pela experiência vivida através dos livros que, desde criança, apreciava com tanto afinco, mas trazem consigo histórias tão valiosas como aquelas impressas em páginas de diferentes gramaturas e formatos.
Quando achei que tinha alcançado o ápice dessa construção como professora, com uma ligação tão íntima com os estudantes que atendia, veio o isolamento social mostrando que esse processo nunca acaba e, tão pouco, tinha começado. Tinha que me reinventar!

Quase dois anos após essa privação da rotina escolar a qual me agrada muito, o retorno às salas de aula foi guiado pela prática da resiliência e reconstrução, e o questionamento que fazia constantemente era: “Como começar?”
Recebia os alunos em grupos pequenos, que se revezavam semanalmente devido às condições em que passamos a viver, o tal “novo normal” que ainda não me desce pela garganta. Era perceptível o quanto todo esse processo a que fomos obrigados a viver foi violento com todos. A maior lacuna era a carência da demonstração de afeto pelos gestos e toques e a urgência, era que fossem ouvidos.

Sempre busquei ser uma professora que tem o diálogo como instrumento primordial para o direcionamento das ações pedagógicas, fazendo da escuta uma prática diária para não me perder em meio às burocracias existentes e, nesse momento, compreendi que era necessário me atentar às necessidades dessas crianças e adolescentes que retornavam à escola, não necessidades ligadas ao estudo, mas ao cuidado afetivo e emocional. Assim foi dada a largada para a consolidação de todo esse trabalho!

Passamos por um longo período de conversa que trouxe à tona muitas lembranças de projetos, festas, ações dentro da escola que marcaram a vida desses estudantes, denominei então o isolamento social como um marco divisório nas minhas práticas. Era o antes e o depois, e um depois muito cruel marcado por insegurança, medos, angústias e incertezas. E quanto à mim, como professora, era a possibilidade de fazer mais pelos alunos e alunas, reconstruir minha identidade como professora.

Em um primeiro momento, a sensação que tinha era de que os alunos e alunas estavam sempre à procura de algo que estava faltando, busca de conhecimento, recuperar o “tempo perdido”, uma busca por se entender, se reconhecer. Se encontrar!
Estavam à procura da parte que falta! E isso me veio como uma luz imensa, direcionando o trabalho com a literatura para incitar os diálogos – que tinham se tornados bem escassos – e assim, direcionar as aulas e projetos para que tivessem um significado na vida de cada um.

O livro que abriu as portas para que esse trabalho acontecesse foi “A parte que falta”, escrito por Shel Silverstein, que foi lido, relido e explorado de diferentes formas. Era notável o quanto os alunos estavam angustiados e carregavam consigo uma carga emocional muito confusa. Era necessário mais!

Horizontes 3

O que esperar do amanhã? Estamos vivendo o “depois” do isolamento? O “depois” da pandemia? Ou simplesmente ansiando pelo depois que tudo acabar? Os diálogos retornavam aos poucos trazendo conflitos internos, ansiedade, tristeza, medo do amanhã, e o livro “Depois”, de Laurent Moreau trouxe à tona a necessidade de viver o agora. De sentir o agora, estar presente e tentar canalizar todas essas emoções de uma forma que conseguissem focar no momento presente.

Horizontes 2

Aproveitando essa trajetória, unimos à nossa leitura o livro de Ivan Zigg, “Todos os meus sonhos”, momento em que dialogamos acerca do amanhã, sobre sonhos e objetivos de vida que ficaram perdidos nessa trajetória conturbada que todos estavam vivendo.

Horizontes 1

Onde ficam todos os sonhos e vontades? Onde estão as expectativas? E em meio às conversas, guiadas pelos alunos e alunas, ficou evidente o quanto estavam com a auto estima abalada: “Não sei fazer nada!”, “Não aprendi nada nesse período dentro de casa”, “Eu sou burra!”. Falas frequentes em todas as aulas e em todas as turmas. Era necessário falar sobre qualidades, sobre as capacidades de cada um e deixar evidente que todos temos saberes incríveis, qualidades incomparáveis e que somos diferentes um dos outros em tudo!

E nas aulas apareciam confeiteiros, cozinheiros, alunos que sabiam cuidar de cavalos, outros que sabiam consertar bicicletas, tinha quem sabia arrumar a casa, escrevia poemas, desenhar, sabia fazer maquiagem e, nesses pequenos detalhes foram se encontrando, colocando os pés no chão e permitindo que a cada dia mais eu me aproximasse deles.
Sentimentos confusos! Era o momento de falar com mais profundidade sobre emoções! Compreender o que estavam sentindo era o ponto crucial para que pudessem se organizar e se comunicar com clareza. Foi apresentada a “Roda das emoções”, uma exemplificação da gama de sentimentos que existem para que pudessem se enxergar e se permitir sentir. Era preciso viver, mesmo na intensidade!

A escolha dos livros infantis foi justificada pela forma simples de se falar sobre sentimentos e emoções, a simplicidade das palavras e riqueza das imagens, era muito mais fácil dialogar! Alguns dos livros trabalhados faziam parte do programa “Minha biblioteca” dos anos anteriores e foram “adotados” pelos alunos após as atividades.

Divido o espaço da Sala de Leitura com a professora Bianca que leciona no período da tarde para os ciclos de alfabetização e interdisciplinar, a nossa troca de experiências trouxe muitas contribuições para as minhas práticas, que foram feitas com as turmas de 6º ao 9º ano Fazendo uma avaliação dessas práticas dentro da sala de leitura através dos diálogos com os alunos e alunas pude perceber o quanto nossas conversas foram significativas, incentivando o empréstimo de livros e a “adoção” desses materiais. O trabalho com os sentimentos e a auto estima dos estudantes foi tão significativo e isso é imensurável, fato que mudou muito o cotidiano do espaço de leitura, onde a proximidade com os estudantes aumentou e o interesse pelas propostas trouxe uma riqueza imensa de propostas e sugestões de projetos para o próximo ano.

Juliane dos Santos Ribeiro é professora da Rede Municipal de Educação e atua na sala de leitura da EMEF CEU Paulo Gonçalo dos Santos.

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