SE LIGA!
Por Maria da Luz Amélia Smith Nunes da Silva
Meu nome é Maria da Luz Amélia Smith Nunes da Silva.
Antigamente, as princesas recebiam nomes compridos, não é? Essa é uma maneira simpática que encontrei de dizer a razão do meu nome. Eu sou uma princesa, por isso, meu nome é assim. Maria da Luz Amélia, Maria é o nome de uma avó, Amélia da outra avó. Smith é o sobrenome inglês que recebi de meu pai, que recebeu do seu avô que foi para a África, vindo da Escócia. Nunes da Silva passei a me chamar depois de casada, pois meu marido nasceu no Brasil.
A ascendência, que trago da minha parte paterna, é de ingleses /escoceses, portugueses, haja visto que o Maria faz parte de mim, e tenho negros na linha geracional, pois os colonizadores se juntavam sempre com as mulheres negras.
Pelo lado materno, tenho o sangue do bisavô paquistanês, portugueses e negros também. Meus avós paternos eram da religião católica, e meus avós maternos muçulmanos, porém, não existiam conflitos pois eram amigos, os avós maternos eram padrinhos do meu pai. Ambos comerciantes.
Pais de Maria Amélia, na década de 1970.
Eu sou a filha mais velha, e depois nasceu a minha irmã Leonette, depois o meu irmão Henrique e depois chegou o nosso irmão Paulinho, que era filho de uma prima do meu pai que faleceu no parto, e seu pai era um soldado.
Tive uma infância que considero privilegiada, e quando eu e a minha irmã fomos para escola, já sabíamos ler e escrever, ensinadas pela nossa mãe, porque ela não queria que incomodássemos a professora branca. A sala de aula era assim, os brancos se sentavam na frente, os mestiços no meio e os negros, que eram minoria, nas últimas carteiras. Como já citei, a professora branca era portuguesa. E na sala de aula, toda atenção era para as crianças brancas, depois para os mestiços, e depois para as negras, se desse tempo.
Estou contando sobre uma época em que as pessoas negras não tinham chance, nem acesso ao estudo, porém hoje é uma situação que poderia ser inconcebível, sendo que a terra é deles, eles eram os nativos, mas só tinham funções serviçais, estavam sempre solícitos e reverentes aos brancos, independente se eram crianças, ou se teriam algum tipo de pagamento.
Nos intervalos da escola, nós brincávamos com as crianças brancas, as crianças negras se reuniam no meio do pátio, onde cantavam e dançavam. Apesar de estar socialmente no “meu lugar”, meu coração estava naquelas danças, e até hoje consigo ouvir aquele canto. Nessa época, o racismo era cultural, visível e aceitável por todos.
Meu pai era funcionário público e trabalhava na Câmara Municipal, que seria para nós aqui a prefeitura, da cidade de Lourenço Marques, antigo nome da cidade de Maputo, capital de Moçambique. A minha mãe era guarda Policial na Penitenciaria Feminina.
Escola em Moçambique
Eu e minha irmã estudávamos de manhã, quando chegávamos em casa, jogávamos a bolsa na cama, trocávamos de roupa e íamos almoçar, tínhamos uma “macaiaia” nome nativo para uma babá que cuidava de nós. Minha mãe tinha uma empregada e meu pai também tinha uma pessoa, que cuidava do carro e do jardim.
Na década de 60/70 fervia uma Guerra de Independência de Moçambique. Quem nasceu no regime de Moçambique colonial, era considerado português, a língua oficial é o português, mas cada região tem os seus dialetos.
Meus pais sentiam que, por serem moçambicanos, eram os donos da terra, não precisariam deixar o país, mas a pressão foi muito grande, a guerra foi entrando dentro da cidade e a situação tornou-se caótica. Lembro- me de um dia, minha mãe estava na janela, provavelmente olhando a situação que acontecia na rua, quando meu pai a puxou para trás, neste momento passou um tiro, e se ele não a puxasse, a bala a teria acertado.
Meus pais, começaram a ser perseguidos no trabalho, pressionados pelas pessoas negras, que levantavam a questão de sermos mestiços, e não de cor branca, qual a razão de ter boas colocações profissionais, e as pessoas negras não?
Meu pai nessa época já era convertido ao protestantismo, então havia contra ele uma perseguição por causa da religião protestante. Naquele momento, no fervor da guerrilha e da luta por seus direitos, em clima de muita insegurança, desconfiança e sem saber que decisões seriam melhores, certo dia meu pai chegou em casa, chamou a mim e a minha irmã, eu tinha 12 anos e a minha irmã 11 , e nos disse que iriamos embora do nosso país. Tínhamos duas opções, Canadá ou Brasil.
Um dos fortes motivos foi porque éramos duas garotas, e o governo que estava a assumir o país recrutava meninas da nossa idade para o exército. Para a luta armada. Como relatei, meu pai era protestante e membro da igreja do Nazareno que enviou como missionários a minha família para o Brasil. A escolha foi o Brasil. Os motivos eram bons. Sabíamos que naquela época no Canadá, as crianças frequentavam a escola 6 meses do ano, os outros 6 ficavam em casa por causa do inverno rigoroso, não tinha negros e a falavam inglês. Brasil, país tropical, tinha um clima muito parecido com o de Moçambique, tem negros e todos falavam o português.
Naquela época eu colecionava fotos e cartões postais do Brasil. Para mim, era um sonho morar aqui.
Quando chegamos em São Paulo, fomos recebidos no aeroporto por um homem com uma placa escrita:” Espero a família Smith.” Era novembro de 1975. Sentimos medo, tristeza, angústia, solidão, mas ao mesmo tempo estávamos aliviados porque conseguimos fugir. Nós somos refugiados de guerra. Tivemos dificuldades para entrar na escola, me lembro que a minha mãe foi na Secretaria da Educação e disse chorando: “Se o país nos aceitou, tem que ter escola para os meus filhos” Conseguimos na Escola Estadual Capitão Deolindo de Oliveira Santos, Ubatuba SP, na 5ª série, e quando chegou a autorização para estudarmos estávamos no 1º colegial, meus irmãos eram menores, e iniciaram os estudos aqui.
Existe um registro oficial com fotos da minha família no Museu do Imigrante.
O Brasil nos recebeu, aqui crescemos, fizemos a nossa história, casei-me, tive meus filhos. Formei-me pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo, em Licenciatura Plena em Ed. Artística. A minha irmã graduou-se aqui no Brasil também e é professora de música e Psicóloga, e o meu irmão é Técnico de refrigeração, formado pelo SENAI.
Sou grata a Deus pela benção de morar aqui.
Sou grata ao Brasil e ao povo brasileiro.
Minha palavra de gratidão é:
Kanimambo.
(Obrigado na língua de Maputo/ Moçambique.)
Veja a entrevista que a Professora Maria da Luz Amélia fez com a estudante Senschise Charlie Beshinai Senecharles
Maria da Luz Amélia Smith Nunes da Silva é moçambicana e vive no Brasil desde menina, é professora de Artes do município de São Paulo.